Porto, 1 de Agosto de 2024
Querido Leitor,
Está na hora de começar a minha viagem pelos caminhos sinuosos que este Diário me levará. Como sabes, há muito que agendava esta partida, mas só nos últimos dias é que consegui reunir as forças necessárias para levar a cabo os últimos preparativos. Desde a primeira hora pude contar com a tua presença e com o alento que é próprio dos amigos com A grande, e é por isso que te dirijo estas minhas primeiras palavras de gratidão. Bem sabes como estas andanças carregam uma exigência superior, mas sinto-me de tal forma atraído por esta aventura que bem poderia jurar estar a viver uma bonita ilusão, como a do jovem poeta imitador de versos. Mas tu sempre foste justo com as minhas ambições quiméricas e cuidaste em segurar o cordel que me prende à Terra sem nunca esquecer de dar alguma folga para que eu pudesse levitar. Em tom sincero te confesso: nunca quis ser escritor, mas sempre quis escrever. Creio que neste bonito jogo de palavras há um fundo de verdade que não poderei ignorar. Ainda te recordas com eu gosto de brincar com as palavras? A questão coloca-se nestes termos: vivo desapegado do meio literário e não desejo ingressar nele pelas vias convencionais. É justo dizer que sou avesso à crítica e a todos quantos dela se alimentam. Li algures, não me recordo onde (talvez numa das célebres cartas do Rilke), que a fonte das palavras mais belas está no nosso interior. Acaso poderei alguma vez alcançá-la se estiver constantemente a ignorar o meu próprio reflexo? É por essa razão que comecei a escrever sem a preocupação de ser escritor, ou, pelo menos, sem a pretenção de alguma vez assinar o meu nome nas capas e lombadas de livros, e de participar na discussão literária que só serve para o benefício próprio de quem nela participa.
Mas agora já estou a demorar-me demasiado na preparação desta pequena aventura. Oxalá possa contar com a tua presença aqui e além, para me ires dando alento e algum propósito. É justo dizer que não sou capaz de explicar o porquê de ter começado a escrever este Diário, tão público, tão desagarrado da intimidade que lhe é própria. As palavras que aqui te deixarei formam parte integrante daquilo que vou sendo e não necessariamente daquilo que sou, pois está claro que nenhuma pessoa permanece imóvel no mesmo sítio, ainda que modestamente assim o pareça, sobretudo quando temos a sensação de nos estarem a crescer raízes profundas a partir dos nossos pés, prendendo-nos a este ou àquele sítio. Mas isso é pura ilusão. Andamos todos nós a navegar num mar sem paredes, uns preocupados em discernir a linha do horizonte para encontrar um porto seguro e outros maravilhados com as novas rotas que as estrelas sugerem.
Perdoa-me, porém, qualquer deslize na minha arte de navegar. Bem conheces estas águas e sabes que, por vezes, elas podem fazer virar o barco e afundá-lo. Mas na condição de irremediável supersticioso que sou, irei apostar todas as minhas fichas na sorte. Afinal, ela só protege quem nela acredita. Oxalá isso seja suficiente para mitigar o enjoo e a saudade.
Do teu,
Manuel Losa
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Créditos Fotográficos: Armada Portuguesa, Livro de Lisuarte de Abreu, séc. XVI. Ver aqui.