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Memórias e Diário de Manuel Losa

Filhos de Eva

Memórias e Diário de Manuel Losa

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São Martinho, 31 de Agosto de 2024

A casa de infância sublimada. No jardim, cada recanto é um convite para ficar quieto a vislumbrar o espectáculo minucioso de bichos e de plantas. Dois ou três minutos em silêncio abrem as portas a um universo de pormenores tão belos que quase passam despercebidos. Lá ao fundo, os campos recheados, prontos a colher. E sinto que a meus pés começam lentamente a crescer raízes, que eu teimosamente arranco por estar demasiado envolvido nesta vida moderna de prazos e de reuniões. Mas pontualmente regresso a esta terra fértil de sonho e ilusão, e sinto novamente a tentação de ficar aqui para sempre com a mesma facilidade com que as crianças adormecem.

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Créditos Fotográficos: Pérgola, óleo sobre tela de Aurélia de Sousa, início do séc. XX. Ver aqui.

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Peso da Régua/Lamego, 30 de Agosto de 2024

Todos vivem com a sua máscara. Mas aqui e além retornam aos bastiadores e mostram a virgindade da sua face descoberta, visível a olho nu. Foi necessário chegar aqui para finalmente lhe poder falar com sinceridade. Lá conseguiu despir-se de todas as falsas aparências e absorver as minhas palavras, que lhe causaram, para minha surpresa, uma reacção genuína. A verdade só dói para quem a teme. Mas tudo isto tem o seu prazo de validade, e daqui a nada, regressados à civilização, ouviremos as três batidas para o início do segundo acto. A diferença é que agora conhecemos a receita para ir antempadamente para o intervalo.

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Créditos Fotográficos: Entardecer no Douro, óleo sobre tela de Manuel Maria Lúcio (1865-1943), 1917. Ver aqui.

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Vila Real, 29 de Agosto de 2024

Dei por mim nesta peregrinação duriense. Uma enxurrada de lugares recôndidos que os meus olhos absorvem até ao tutano. No alto deste monte, olho para a paisagem com a sensação de lhe pertencer, como se este horizonte fosse o espelho no qual me reconheço todas as manhãs. A infância que passei no Douro cravou no mapa um ponto de referência que, por mais demoradas que sejam as minhas ausências, dificilmente se apagará.

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Créditos Fotográficos: Paisagem, óleo sobre tela de José Malhoa, 1889. Ver aqui.

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Porto, 15 de Agosto de 2024

Dia preguiçoso. Tudo pareceu um esforço imensurável, inclusivamente o viver. Cheguei ao fim com o corpo dorido e com a mente transformada num farrapo. E de útil e interessante não produzi nada. Apetece-me dormir, mas o cansaço ironicamente anulou-me o sono. Acordado, num estado vegetativo de não-pensar e não-sentir, limito-me a aguardar a vinda da manhã para iniciar a minha fotossíntese. 

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Créditos Fotográficos: Natureza Morta, óleo sobre tela de Columbano Bordalo Pinheiro, 1899. Ver aqui.

 

Porto, 7 de Agosto de 2024

Persegue-me uma incessante vontade de tomar o hábito e fechar-me no claustro. Não me aflige nem um pouco a ideia de me tornar numa criatura de hábitos petrificados e milenares. Todos os dias os mesmos pesos e as mesmas medidas, todos os dias luz e sombra. E depois os mesmos gestos, as mesmas orações, os mesmos rostos. Nem mais, nem menos. Apesar da sua aparente ingenuidade, há rituais que já nascem com o peso dos séculos. Imitá-los é como participar numa peça teatral mística. E quem é que não gostaria de fazê-lo, ainda que fosse enquanto mero figurante?

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Créditos Fotográficos: O desespero de Job, aquarela de William Blake, 1806. Ver aqui.

 

Porto, 6 de Agosto de 2024

Tudo é uma questão de palavras. E quem sabe bem o que isso significa são os Poetas (com P grande), porque a poesia é a arte do aperfeiçoamento da palavra, e porque na poesia há uma preocupação com os significados que cada palavra carrega em si e relativamente às outras. É pena que pouca gente se aperceba disso. Ainda assim, o pior é quando se disparam críticas aguçadas à minúcia de quem prefere escolher a palavra certa, como se isso fosse apenas e somente a loucura de estimação de um puritano linguístico. Para mim, é uma imperiosa necessidade do dia-a-dia, porque me reconforta e protege. A verdade dói, mas não queima nem deixa odores indesejados. Fulano tal, "amigo"? Não há fraternidade nenhuma que consiga caber nas nossas interacções. As engrenagens movem-se por pura necessidade social, típica de um "dar bem nas vistas" que rói-me por dentro. Meia dúzia de minutos e tantas outras palavras mansas de conveniência são o resumo dos nossos convívios. De vez em quando atinge-se o ponto de ebulição, e cá de dentro saí um grito do Ipiranga. A palavra "amigo" é uma palavra abençoada que não utilizo só porque sim. Aliás, cada dia a utilizo menos, preferindo no seu lugar uma outra palavra, mais adequada, que nem sempre aparece. Mas pouco importa. É precisamente essa minha justeza na sua utilização que confere à palavra "amigo" ainda mais significado e valor.

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Créditos Fotográficos: Uma "escripintura" do artista plástico Emereciano, 2006. Ver aqui.

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