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Memórias e Diário de Manuel Losa

Filhos de Eva

Memórias e Diário de Manuel Losa


Porto, 19 de Novembro de 2024

Inacreditável como, mais frequentemente do que seria saudável esperar, o saber-fazer anda de mão dada com uma grosseira atitude de superioridade. Curiosa condição que me parece estar especialmente enraizada no tipo português. Raizes bem profundas - admita-se. Quando o saber provém do indivíduo culto, há que baixar as orelhas e zurrar em conformidade, mas baixinho, sem incomodar o fluxo da sapiência; quando o saber é do tipo que tem as mãos calejadas, coitado do menino da cidade que questiona este ou aquele cânone intemporal (o mesmo cânone que consegue pôr em confronto irreconciliável, na mesma disciplina, camponeses de duas aldeias vizinhas). Mas compreende-se o porquê. Cada um agarra-se ao que pode nesta existência desesperada, como se ao reconhecer a sabedoria do seu semelhante o pobre homenzinho perdesse irreparavelmente a própria identidade. Do pesadelo nasce o hábito. E viva a Santa Ignorância, com "i" grande, que ainda consegue colher esmolas às mãos-cheias. 

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Créditos Fotográficos: A Alegoria da Caverna, de Platão, representada por Jan Saenredam (c. 1604). Disponível aqui.

Porto, 4 de Novembro de 2024

Afastado das minhas ambições, elas colocadas cautelosamente na estante mais alta e mais escura, inacessíveis ao toque e à vista. Devo adorar esta tortura quotidiana a que me sujeito. O carrasco e a vítima até comem do mesmo pão e bebem da mesma água. Quando surge a necessidade de assumir um compromisso, logo faço aparecer um punhado cheio de argumentos para adiá-lo, ou, pior, cresce-me a habilidade de menosprezar a sua importância com a força de um retórico qualquer. Não consigo tomar acção; não gosto de tomar acção; odeio tomar acção. A acção mete-me medo. Mas a consciência diz-me que há margem para manobra. Ainda guardo uma gota de fé em todo este desespero. Que bela contradição! É bela porque nela existe um resquício de esperança e de verdade. De humanidade, talvez. Até à minha libertação, vou vivendo assim, lento, indiferente, embrenhado na baba do caracol, mas com os olhos postos em algo que virá, não sei a que horas do dia. Agarro-me a uma verdade que, por ser invisível, não deixa de existir.

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Créditos Fotográficos: Artur Pastor, [Lisboa], 1960-70. Disponível aqui.

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