Porto, 4 de Novembro de 2024
Afastado das minhas ambições, elas colocadas cautelosamente na estante mais alta e mais escura, inacessíveis ao toque e à vista. Devo adorar esta tortura quotidiana a que me sujeito. O carrasco e a vítima até comem do mesmo pão e bebem da mesma água. Quando surge a necessidade de assumir um compromisso, logo faço aparecer um punhado cheio de argumentos para adiá-lo, ou, pior, cresce-me a habilidade de menosprezar a sua importância com a força de um retórico qualquer. Não consigo tomar acção; não gosto de tomar acção; odeio tomar acção. A acção mete-me medo. Mas a consciência diz-me que há margem para manobra. Ainda guardo uma gota de fé em todo este desespero. Que bela contradição! É bela porque nela existe um resquício de esperança e de verdade. De humanidade, talvez. Até à minha libertação, vou vivendo assim, lento, indiferente, embrenhado na baba do caracol, mas com os olhos postos em algo que virá, não sei a que horas do dia. Agarro-me a uma verdade que, por ser invisível, não deixa de existir.
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Créditos Fotográficos: Artur Pastor, [Lisboa], 1960-70. Disponível aqui.