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Memórias e Diário de Manuel Losa

Filhos de Eva

Memórias e Diário de Manuel Losa

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Peso da Régua/Lamego, 30 de Agosto de 2024

Todos vivem com a sua máscara. Mas aqui e além retornam aos bastiadores e mostram a virgindade da sua face descoberta, visível a olho nu. Foi necessário chegar aqui para finalmente lhe poder falar com sinceridade. Lá conseguiu despir-se de todas as falsas aparências e absorver as minhas palavras, que lhe causaram, para minha surpresa, uma reacção genuína. A verdade só dói para quem a teme. Mas tudo isto tem o seu prazo de validade, e daqui a nada, regressados à civilização, ouviremos as três batidas para o início do segundo acto. A diferença é que agora conhecemos a receita para ir antempadamente para o intervalo.

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Créditos Fotográficos: Entardecer no Douro, óleo sobre tela de Manuel Maria Lúcio (1865-1943), 1917. Ver aqui.

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Vila Real, 29 de Agosto de 2024

Dei por mim nesta peregrinação duriense. Uma enxurrada de lugares recôndidos que os meus olhos absorvem até ao tutano. No alto deste monte, olho para a paisagem com a sensação de lhe pertencer, como se este horizonte fosse o espelho no qual me reconheço todas as manhãs. A infância que passei no Douro cravou no mapa um ponto de referência que, por mais demoradas que sejam as minhas ausências, dificilmente se apagará.

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Créditos Fotográficos: Paisagem, óleo sobre tela de José Malhoa, 1889. Ver aqui.

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Porto, 15 de Agosto de 2024

Dia preguiçoso. Tudo pareceu um esforço imensurável, inclusivamente o viver. Cheguei ao fim com o corpo dorido e com a mente transformada num farrapo. E de útil e interessante não produzi nada. Apetece-me dormir, mas o cansaço ironicamente anulou-me o sono. Acordado, num estado vegetativo de não-pensar e não-sentir, limito-me a aguardar a vinda da manhã para iniciar a minha fotossíntese. 

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Créditos Fotográficos: Natureza Morta, óleo sobre tela de Columbano Bordalo Pinheiro, 1899. Ver aqui.

 

Porto, 7 de Agosto de 2024

Persegue-me uma incessante vontade de tomar o hábito e fechar-me no claustro. Não me aflige nem um pouco a ideia de me tornar numa criatura de hábitos petrificados e milenares. Todos os dias os mesmos pesos e as mesmas medidas, todos os dias luz e sombra. E depois os mesmos gestos, as mesmas orações, os mesmos rostos. Nem mais, nem menos. Apesar da sua aparente ingenuidade, há rituais que já nascem com o peso dos séculos. Imitá-los é como participar numa peça teatral mística. E quem é que não gostaria de fazê-lo, ainda que fosse enquanto mero figurante?

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Créditos Fotográficos: O desespero de Job, aquarela de William Blake, 1806. Ver aqui.

 

Porto, 6 de Agosto de 2024

Tudo é uma questão de palavras. E quem sabe bem o que isso significa são os Poetas (com P grande), porque a poesia é a arte do aperfeiçoamento da palavra, e porque na poesia há uma preocupação com os significados que cada palavra carrega em si e relativamente às outras. É pena que pouca gente se aperceba disso. Ainda assim, o pior é quando se disparam críticas aguçadas à minúcia de quem prefere escolher a palavra certa, como se isso fosse apenas e somente a loucura de estimação de um puritano linguístico. Para mim, é uma imperiosa necessidade do dia-a-dia, porque me reconforta e protege. A verdade dói, mas não queima nem deixa odores indesejados. Fulano tal, "amigo"? Não há fraternidade nenhuma que consiga caber nas nossas interacções. As engrenagens movem-se por pura necessidade social, típica de um "dar bem nas vistas" que rói-me por dentro. Meia dúzia de minutos e tantas outras palavras mansas de conveniência são o resumo dos nossos convívios. De vez em quando atinge-se o ponto de ebulição, e cá de dentro saí um grito do Ipiranga. A palavra "amigo" é uma palavra abençoada que não utilizo só porque sim. Aliás, cada dia a utilizo menos, preferindo no seu lugar uma outra palavra, mais adequada, que nem sempre aparece. Mas pouco importa. É precisamente essa minha justeza na sua utilização que confere à palavra "amigo" ainda mais significado e valor.

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Créditos Fotográficos: Uma "escripintura" do artista plástico Emereciano, 2006. Ver aqui.


 

Porto, 1 de Agosto de 2024

 

Querido Leitor,

 

Está na hora de começar a minha viagem pelos caminhos sinuosos que este Diário me levará. Como sabes, há muito que agendava esta partida, mas só nos últimos dias é que consegui reunir as forças necessárias para levar a cabo os últimos preparativos. Desde a primeira hora pude contar com a tua presença e com o alento que é próprio dos amigos com A grande, e é por isso que te dirijo estas minhas primeiras palavras de gratidão. Bem sabes como estas andanças carregam uma exigência superior, mas sinto-me de tal forma atraído por esta aventura que bem poderia jurar estar a viver uma bonita ilusão, como a do jovem poeta imitador de versos. Mas tu sempre foste justo com as minhas ambições quiméricas e cuidaste em segurar o cordel que me prende à Terra sem nunca esquecer de dar alguma folga para que eu pudesse levitar. Em tom sincero te confesso: nunca quis ser escritor, mas sempre quis escrever. Creio que neste bonito jogo de palavras há um fundo de verdade que não poderei ignorar. Ainda te recordas com eu gosto de brincar com as palavras? A questão coloca-se nestes termos: vivo desapegado do meio literário e não desejo ingressar nele pelas vias convencionais. É justo dizer que sou avesso à crítica e a todos quantos dela se alimentam. Li algures, não me recordo onde (talvez numa das célebres cartas do Rilke), que a fonte das palavras mais belas está no nosso interior. Acaso poderei alguma vez alcançá-la se estiver constantemente a ignorar o meu próprio reflexo? É por essa razão que comecei a escrever sem a preocupação de ser escritor, ou, pelo menos, sem a pretenção de alguma vez assinar o meu nome nas capas e lombadas de livros, e de participar na discussão literária que só serve para o benefício próprio de quem nela participa.

Mas agora já estou a demorar-me demasiado na preparação desta pequena aventura. Oxalá possa contar com a tua presença aqui e além, para me ires dando alento e algum propósito. É justo dizer que não sou capaz de explicar o porquê de ter começado a escrever este Diário, tão público, tão desagarrado da intimidade que lhe é própria. As palavras que aqui te deixarei formam parte integrante daquilo que vou sendo e não necessariamente daquilo que sou, pois está claro que nenhuma pessoa permanece imóvel no mesmo sítio, ainda que modestamente assim o pareça, sobretudo quando temos a sensação de nos estarem a crescer raízes profundas a partir dos nossos pés, prendendo-nos a este ou àquele sítio. Mas isso é pura ilusão. Andamos todos nós a navegar num mar sem paredes, uns preocupados em discernir a linha do horizonte para encontrar um porto seguro e outros maravilhados com as novas rotas que as estrelas sugerem.

Perdoa-me, porém, qualquer deslize na minha arte de navegar. Bem conheces estas águas e sabes que, por vezes, elas podem fazer virar o barco e afundá-lo. Mas na condição de irremediável supersticioso que sou, irei apostar todas as minhas fichas na sorte. Afinal, ela só protege quem nela acredita. Oxalá isso seja suficiente para mitigar o enjoo e a saudade.

 

Do teu,

Manuel Losa

 

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Créditos Fotográficos: Armada Portuguesa, Livro de Lisuarte de Abreu, séc. XVI. Ver aqui.

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